30.4.18

Agustina Bessa-Luís (Memória)






(Memória)



A má memória é essencial para escrever romances, tudo se repete.

Quando a boa memória existe em abundância tudo resulta em fracasso; porque o génio não convence se não estiver aturdido com certa dureza de espírito que não dá conta de quanto a fantasia é coisa venerável pela velhice que testemunha. (I)




AGUSTINA BESSA-LUÍS
Fanny Owen
(1979)


.

29.4.18

Rocío Wittib (Acontece às vezes)




sucede a veces

así de pronto
cuando todas las preguntas
han quedado respondidas
pero aquello que sabemos
nos sigue interrogando


 ahora que ya es después
y todavía ahora
sabemos que vuelve a ser cierta
inútil pero cierta
la vida
  
Rocío Wittib



  
acontece às vezes
assim de repente
quando as perguntas todas
receberam resposta
mas aquilo que sabemos
continua a interrogar-nos

agora que é já depois
e agora ainda
sabemos que volta a ser verdadeira
inútil mas verdadeira
a vida


(Trad. A.M.)

.

28.4.18

Roberto Juarroz (Se conhecêssemos o ponto)






Si conociéramos el punto
donde va a romperse algo,
donde se cortará el hilo de los besos,
donde una mirada dejará de encontrarse con otra mirada,
donde el corazón saltará hacia otro sitio,
podríamos poner otro punto sobre ese punto
o por lo menos acompañarlo al romperse.

Si conociéramos el punto
donde algo va a fundirse con algo,
donde el desierto se encontrará con la lluvia,
donde el abrazo se tocará con la vida,
donde mi muerte se aproximará a la tuya,
podríamos desenvolver ese punto como una serpentina
o por lo menos cantarlo hasta morirnos.

Si conociéramos el punto
donde algo será siempre ese algo,
donde el hueso no olvidará a la carne,
donde la fuente es madre de otra fuente,
donde el pasado nunca será pasado,
podríamos dejar sólo ese punto y borrar todos los otros
o guardarlo por lo menos en un lugar más seguro.


Roberto Juarroz

  


Se conhecêssemos o ponto
em que algo se vai rasgar,
onde será cortado o fio dos beijos,
onde um olhar deixará de encontrar-se com outro olhar,
onde o coração saltará para outro lugar,
poderíamos pôr outro ponto nesse ponto
ou pelo menos acompanhá-lo ao rasgar.

Se conhecêssemos o ponto
em que algo vai fundir-se com algo,
onde o deserto se encontrará com a chuva,
onde o abraço se roçará com a vida,
onde minha morte se aproximará da tua,
poderíamos desenvolver esse ponto como serpentina
ou pelo manos cantá-lo até morrer.

Se conhecêssemos o ponto
onde algo será sempre esse algo,
onde o osso não esquecerá a carne,
onde a fonte é mãe de outra fonte,
onde o passado jamais será passado,
poderíamos deixar só esse ponto e apagar os outros
ou guardá-lo pelo menos em lugar mais seguro.


(Trad. A.M.)
.

27.4.18

Ana Salomé (Ode Rimbaud)





ODE RIMBAUD



eu sou absolutamente moderna, Rimbaud.
sei que nunca pensaste que uma rapariga de Portugal
se tornasse absolutamente moderna.
o caso é que nunca deitei o amor pela janela
mas a janela deitou-se pelo amor dentro.
não toco piano, não falo francês, nem faço fru-fru.
sou absolutamente moderna, Rimbaud.
tenho telemóvel, tenho blog, tenho carro
e até uma paixão que já não é platónica
agora para se ser absolutamente moderno
diz-se virtual, Rimbaud.
perdoa-me
dou-te a minha perna
um prato com bolinhos de canela
para te lembrares do tempo dela.
perdoa-me o sarcasmo, Rimbaud
o fatalismo azedo de rapariga absolutamente moderna
constructo humano, já não ser.
perdoa as minhas pernas a engordar de noite para noite
o fumo da chaminé comum do prédio
a minha imensa falta de árvores
a minha necessidade que devora um poema para o deitar fora.
perdoa-me não ter entendido uma única coisa que disseste
mesmo na tradução do Cesariny que é livre e bela
como uma rosa francesa desgrenhada em solo português.
perdoa-me escrever telegraficamente 
ter deixado de respirar para todo o sempre
e continuar a pintar os lábios de vermelho
como se isso fosse possível num deserto sem beijos.
perdoa-me não ter conseguido manter a tua palavra
perdoa-me ter falhado e ser erro.

p.s. - se quiseres regressar a terra
como o Cristo da literatura do não
tomas café comigo?


Ana Salomé


.

26.4.18

Raúl Gómez Jattín (Os poetas)





Los poetas, amor mío, son
Unos hombres horribles, unos
Monstruos de soledad, evítalos
Siempre, comenzando por mí.
Los poetas, amor mío, son
Para leerlos. Mas no hagas caso
A lo que hagan en sus vidas.

Raúl Gómez Jattin




Os poetas, amor meu, são
uns homens horríveis, uns
monstros de solidão, trata
de evitá-los, a começar por mim.
Os poetas, amor meu, são
para se ler. Não ligues
àquilo que façam da vida.

(Trad. A.M.)

.


25.4.18

José Antonio Labordeta (Versos como beijos)






VERSOS COMO BESOS



Los versos se hacen versos
en los atardeceres del otoño
y en el corazón somnoliento
se abren ríos de luz
y de esperanza.
Es como si todo
volviese a empezar
de manera infinita
y transversal.

José Antonio Labordeta




Os versos fazem-se versos
nos entardeceres de Outono,
quando no peito sonolento
se abrem rios de luz
e de esperança.
É como se começasse
de novo tudo,
de um modo infinito
e transversal.

(Trad. A.M.)


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.

24.4.18

A.M.Pires Cabral (Fogo posto)





FOGO POSTO


E se eu acabasse por chegar à conclusão
de que - contrariamente a outras conclusões
a que também tenho chegado algumas vezes-
não existe ignição fora de mim?


Que o fogo sou eu mesmo que o trago de raiz
e o comunico à noite
- por simples contacto, como num
cigarro aceso se acende a outro cigarro.


Que farias, noite, se isto fosse assim?
Apagavas-te, submissa?
Continuavas a arder como se nada fosse?


(Pelo sim, pelo não, chamem os bombeiros.)


A.M.Pires Cabral

.

23.4.18

Pedro César Alcubilla (Primeiramente)






PRIMERO



Ahora que te despiertas
con esta desilusión
tan extremadamente salvaje,
no pienses
en lo largo que es el dia
que te queda por delante,
ni en todos los problemas
dispuestos a colgarte boca abajo
y sacudirte los bolsillos
de ilusiones.
Piensa solamente
en poner uno de tus pies
en el suelo.
Lo demás, de momento,
permanece demasiado lejos
de tu alcance.

Pedro César Alcubilla




Agora que despertas
com essa desilusão
tão amarga,
não penses
quão longo é o dia
que tens pela frente,
nem nesses problemas
que te vão pôr de cabeça para baixo
e sacudir-te os bolsos
de ilusões.
Pensa apenas
em pôr no chão
um dos pés.
O resto, por agora,
está longe de mais
do teu alcance.

(Trad. A.M.)
.

22.4.18

Pedro A. González Moreno (Quinto elemento)






QUINTO ELEMENTO



É boa terra a palavra,
não precisa de chuva
para a semente vingar
e se ouvir na nossa carne.

Água que nos mata a sede
e tal como um cão fiel nos
lambe as feridas piedosamente.

Vozes que ao ar pertencem
e fazem da alma das coisas
matéria respirável.

Fogueira sem chama que se acende
na noite como um relâmpago
a alumiar-nos a derrota.

Poema, perfeita síntese,
terra e água e ar e fogo,
quinto elemento misterioso
que nome a nome, nessa química
verbal que tudo transforma,
nos faz corpo de seu corpo.


Pedro A. González Moreno

(Trad. A.M.)

.

21.4.18

Agustina Bessa-Luís (A Régua)





(Régua)


A Régua, em 1840, era um pouco St. Louis do Missouri, só que com menos europeus.

Havia ingleses, é certo; mas para cá da Mancha um inglês sofre uma rebaixa de cinquenta por cento.

Para chegar onde quero chegar direi que em 1845, nos altos de Baião e num lugar chamado Santa Cruz do Douro, vivia um desses morgados bizarros, que cumprem o seu destino seduzindo uma costureira, casando com uma prima e endividando-se quase sem sair de casa – a comer e a administrar mal as terras. (I)



AGUSTINA BESSA-LUÍS
Fanny Owen
(1979)
.

20.4.18

Pablo Neruda (Em ti a terra)





EN TI LA TIERRA



Pequeña rosa, rosa pequeña,
a veces,
diminuta y desnuda,
parece que en una mano mía cabes,
que así voy a cercarte y a llevarte a mi boca,
pero de pronto
mis pies tocan tus pies y mi boca tus labios,
has crecido
suben tus hombros como dos colinas,
tus pechos se pasean por mi pecho,
mi brazo alcanza apenas a rodear la delgada
línea de luna nueva que tiene tu cintura:
en el amor como agua de mar te has desatado:
mido apenas los ojos más extensos del cielo
y me inclino a tu boca para besar la tierra.


Pablo Neruda




Pequena rosa, rosa pequena,
às vezes,
diminuta e desnuda,
parece que me cabes na mão
e que te chego e levo à boca,
mas de repente
meus pés tocam os teus
e minha boca teus lábios,
cresceste
sobem teus ombros como duas colinas,
teus peitos passeiam por meu peito,
e meu braço mal consegue abarcar a linha
delgada de lua nova que tem a tua cintura.
No amor te derramas como água de mar,
enquanto eu, mal medindo os olhos mais extensos do céu,
debruço-me em tua boca para beijar a terra.

(Trad. A.M.)
.

19.4.18

Oscar Hahn (Hipótese celeste)






HIPÓTESIS CELESTE


I

Las catedrales azules del cielo esplenden en la noche
sin fin
y sus vitrales de colores dejan pasar la luz de otros
mundos

Tu locura mi cielo brilla en la noche estelar

De tu frente sin orden
se alza un arco iris que acaba en mi frente

Mi doncella de singular hermosura
duerme a la orilla de un arroyo celeste

Recostado en la hierba espacial
yace un joven de risueñas formas y colores

Su figura de ojos instantáneos
se eleva sin mancha a plena luz

Y convertido en lluvia de oro
dora el cuerpo de la hermosa doncella
   (...)


Oscar Hahn




As catedrais azuis do céu resplandecem na noite
sem fim
e seus vitrais coloridos filtram a luz
de outros mundos

Tua loucura meu bem brilha na noite estrelada

De tua fronte se ergue
um arco-íris que acaba na minha fronte

Minha donzela de beleza singular
dorme na margem de um regato celeste

Deitado na erva do espaço
está um jovem de risonhas formas e cores

Sua figura de olhos inquietos
ergue-se no dia em plena luz

E convertido em chuva de oiro
doura o corpo da bela donzela
   (...)

(Trad. A.M.)
.

18.4.18

Eugénia de Vasconcellos (Claridade)






CLARIDADE



Como a madrugada
promete a claridade
nítida, orvalhada,
onde a noite se despe em luz
assim atravessa a rua
a voz nua da manhã
e toda a sombra recua
e toda a memória é vã.


Eugénia de Vasconcellos



>>  Cabeça de cão (blogue) / Escritores (bio)

.

17.4.18

Oliverio Girondo (Crua dicotomia)





DICOTOMÍA INCRUENTA



Siempre llega mi mano
más tarde que otra mano que se mezcla a la mía
y forman una mano.

Cuando voy a sentarme
advierto que mi cuerpo
se sienta en otro cuerpo que acaba de sentarse
adonde yo me siento.

Y en el preciso instante
de entrar en una casa,
descubro que ya estaba
antes de haber llegado.

Por eso es muy posible que no asista a mi entierro,
y que mientras me rieguen de lugares comunes,
ya me encuentre en la tumba,
vestido de esqueleto,
bostezando los tópicos y los llantos fingidos.


Oliverio Girondo




Chega sempre minha mão
depois de outra mão a unir-se com a minha
formando uma só mão.

Dou conta quando me sento
que meu corpo se senta em outro corpo
sentado onde me sento.

E no preciso momento
de entrar em casa,
descubro que já lá estava
antes mesmo de entrar.

Por isso é bem possível que não assista ao meu enterro
e que enquanto me reguem de lugares comuns
eu me meta antes no caixão,
vestido de esqueleto,
bocejando com as trivialidades e prantos fingidos.


(Trad. A.M.)

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16.4.18

Jesús Aguado (O que vejo passar)





Lo que veo pasar me ve pasar
y por eso estoy vivo.
Lo que veo
detenido me ve quedarme quieto
y por eso no muero.
En mis ojos,
los ojos de los árboles y el río
se miran para ser y darme el ser.
No espejos sino luz.
No parentesco
o relación sino lo mismo.
No
el tiempo desplegándose despacio
para extender su red
sino la araña
devorando a la araña para hacerse
tan grande como el tiempo y devorarle.

Lo que veo pasar me deja ciego
y por eso estoy vivo.
Lo que veo
detenido me aparta de mis ojos
y por eso no muero.
!Sigo aquí!

Jesús Aguado



O que vejo passar vê-me passar a mim
e por isso estou vivo.
O que vejo detido
vê-me a mim ficar quieto
e por isso não morro.
Em meus olhos se miram
os olhos das árvores e o rio
para serem e me darem o ser.
Não espelhos, mas luz.
Não parentesco
ou relação mas o mesmo.
Não
o tempo desdobrando-se devagar
para estender sua rede
mas a aranha
a devorar a aranha para se fazer
tão grande como o tempo e devorá-lo.

O que vejo deixa-me cego
e por isso estou vivo.
O que vejo
detido aparta-me de meus olhos
e por isso não morro.
Continuo aqui!

(Trad. A.M.)


>>  A media voz (17p) / Las afinidades electivas (4p) / Escritores (nota)

.

15.4.18

Vasco Graça Moura (Na praia lá do Guincho)

 





na praia lá do guincho as velas
de windsurf saltam sobre as ondas
e o meu olhar, equestre,
pula nos peitos das banhistas, enquanto
um cachorro tenta agarrar a cauda.

nos feriados tudo é insuportável
menos o sol e o mar
apesar das famílias.
e sustendo as gaivotas na mais alta
imaginação, porque hoje não vi nenhuma,

o vento traz de tudo
e antónio nobre e lorca às pandas roupas
que modelam os corpos em míticas figuras
com o seu drapejado esvoaçante,
entre dunas e lixo e vendedores de gelados.

restaria o campo, mas
«no campo não há bicas nem paperbacks»
diz uma amiga minha e tem razão.
que seria de nós, bucólicos, sem esses indicadores da alma? dou

lume a uma italiana e enquanto
ela agradece ocorre-me que despi-la já não é
cosa mentale; faz-me lembrar o algarve, mas no verão
o algarve é a continuação
da política por outros meios. antes
a nortada, os surfistas,
na crista da onda, a areia que entra no poema,
e o regresso mais cedo, quando já não se
aguenta.


Vasco Graça Moura


.

14.4.18

Miquel Martí i Pol (Herdei a esperança)






HERDEI A ESPERANÇA



Herdei a esperança dos avós
e a paciência dos pais.

E duns e doutros as palavras,
de que me sirvo agora
para vos falar.


Miquel Martí i Pol

(Trad. A.M./ sobre versão cast. Joan B. Fort i Olivella)


.

13.4.18

Mariano Crespo (Puberdade dos sessenta)






PUBERTAD DE LOS SESENTA



Dejas de beber, de fumar
piensas que el capitalismo es una mierda
que te consiente vivir en la parte
buena del planeta
y que contra Franco
aprendiste a Freud, el Kamasutra
y que a Carlos Marx
no le iba la ensaladilla rusa
ni el gulag ni la nomenklatura.
Además que de las cenizas del nazareno
nacieron las míseras venéreas de la curia,
la emoción de la Capilla Sixtina,
los secretos de las víboras
el veneno de los besos de puta,
y el éxtasis, gloria bendita,
de Haendel y su Aleluya.

Que la vida es una contrarreloj
absurda desde la nada hasta la nada
y algunos corren por ganarla.

Es la síntesis de la madurez,
el reposo de los cincuenta.
Afortunadamente vuelve
una segunda adolescencia.
Te das cuentas de que aquello
que hiciste bien no estaba tan bien,
mas bien, era, además de una reiteración,
una trampa burda de la conciencia.
Te das cuenta de que aquello
que no te perdonas
es por lo que alguna mujer
volvería a soltarse la melena.

Esto de la pubertad de los sesenta
tiene todas las contraindicaciones
que ustedes quieran,
pero me obliga aplazar la muerte
un par o dos de décadas.
Porque yo o me muero en paz
con un inventario en limpio
de gozos y de penas
de méritos y de deudas
o me quedo sentado en la barra
escribiendo un Canto a mí mismo
- como el viejo Walt Whitman-
para meterlo en una botella
y tirarlo desde el delta de tu pubis
al mar que tu mirada refleja.
Porque para pasarme la eternidad
como el pensador de Rodin,
que no sabes si se aburre o piensa,
no cierro para siempre
ni los ojos ni la bragueta,
ni el corazón ni la cabeza.




Deixas de beber, de fumar,
pensas que o capitalismo é uma merda
que te permite viver na parte boa do planeta
e que contra Franco
aprendeste Freud, o Kamasutra,
e que Karl Marx não ia com a salada russa,
nem o Gulag, nem a Nomenklatura.
E que das cinzas do nazareno
nasceram as pobrezas venéreas da cúria,
a emoção da Capela Sistina,
os segredos das víboras,
o veneno dos beijos de puta
e o êxtase, bendita glória,
de Haendel e do Aleluia.

Que a vida é um contra-relógio
absurdo do nada para o nada
e que alguns correm para a vitória.

É a síntese da idade madura,
o repouso dos cinquenta.

Volta, felizmente,
uma segunda adolescência.
Reparas que aquilo
que fizeste bem não foi tão bem como isso,
sendo antes, além de reiteração
uma cilada tosca da consciência.
Reparas que aquilo que não te perdoas
é o mesmo que faria a qualquer mulher
soltar o cabelo.

Isso da puberdade dos sessenta
tem as contra-indicações todas
que vocês quiserem,
mas obriga-me a aprazar a morte
para dez ou vinte anos.
Porque eu ou morro em paz
com um cadastro limpinho
de gozos e desgostos
de méritos e dívidas,
ou então sento-me ao balcão
a escrever um Canto a mim mesmo
- como o velho Walt Whitman -
para o meter numa garrafa
e do delta de teu púbis
atirá-lo ao mar reflexo do teu olhar.
Porque para passar a eternidade
como o pensador de Rodin,
que não se sabe se pensa ou se chateia,
não fecho de vez para sempre
nem os olhos nem a berguilha,
nem o coração ou a cabeça.

(Trad. A.M.)

.

12.4.18

Agustina Bessa-Luís (Fanny Owen)





(O rio Douro)


O rio Douro não teve cantores.

Teve-os o Mondego e o Tejo também.

Mas, para além das cristas do Marão, em vez do alaúde e da guitarra havia o repique dos sinos ou o seu dobrar espaçado.

Havia o tiro certeiro dos caçadores de perdiz, lá pelas bandas da Muxagata e do Cachão da Valeira.

E o clarim das guerrilhas ouvia-se através da poeira de neve que cobria os barrancos de Sabroso.

O rio Douro ficou banido da lírica portuguesa com a sua catadura feroz pouco própria para animar os gorjeios dos bernardins, que são sempre lamurientos e que à beira de água lavam os pés e os pecados.

E no entanto, trata-se de um rio majestoso como não há outro. (Início)



AGUSTINA BESSA-LUÍS
Fanny Owen
(1979)

.

11.4.18

Luis Alberto de Cuenca (Só o silêncio salva)






SÓLO EL SILENCIO SALVA



Sólo el silencio salva, compañero.
Sólo el silencia salva. Si has tenido
una noche gloriosa en que Afrodita
te ha sonreído y Baco te ha llenado
la copa sin cesar, piensa que luego,
cuando la oscuridad se desvanezca,
tus amigos se marchen a sus casas
y empiece a amanecer, sólo el silencio
va a salvarte, muchacho. Tenlo en cuenta.


Luis Aberto de Cuenca





Só o silêncio é que salva, companheiro.
Só o silêncio. Se tiveste
uma noite gloriosa em que Afrodite
te sorriu e Baco te foi enchendo
o copo sem parar, pensa que a seguir
quando o escuro se romper
e os amigos forem para casa
e chegar de novo a manhã,
somente o silêncio, rapaz,
te há-de salvar. Lembra-te disso.

 (Trad. A.M.)
.

10.4.18

Antonio Cabrera (Um segundo)






UN SEGUNDO



Tengo las manos frías.
He salido a la calle,
he resuelto el asunto banal correspondiente
y he regresado a casa para ocupar de nuevo
mi sitio en esta mesa.
He descubierto entonces
la frialdad de mis manos,
signo
que me perturba acaso sin justificación,
porque es muy poca cosa tener las manos frías.

Este frío noviembre
está en mis manos, nada más.
Soy yo:
veo el jarrón ingenuamente griego
y la tarde de siempre rodeándome.

Pero en mí es muy raro tener las manos frías.

En un fugaz segundo, mi pensamiento ha visto
la niebla tan probable, la hoja gris escrita
donde el nombre que tengo estaría tachado
con la tinta de escarcha del final.

Antonio Cabrera



Tenho as mãos frias.
Saí para a rua,
resolvi um assunto banal
e voltei para casa,
para o meu lugar nesta mesa.
Então descobri o frio das mãos,
sinal
que me perturba acaso sem motivo,
por ser coisa pouca ter as mãos frias.

É o frio de Novembro
que tenho nas mãos, nada mais.
Sou eu mesmo,
vejo o ingénuo jarrão grego
e a tarde de sempre em redor.

Mas comigo é muito raro ter as mãos frias.

Num instante fugaz, o meu pensamento viu
a névoa tão provável, a folha cinzenta escrita
com o meu nome em baixo
rasurado com a tinta de orvalho
do final.

(Trad. A.M.)


>>  A media voz (13p) / Wikipedia

.



9.4.18

Sebastião Alba (Ninguém meu amor)






Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos.


Sebastião Alba


.

8.4.18

María Laura Decésare (O milagre)






EL MILAGRO



Siempre esperamos que suceda algo,
quedamos en estado de alerta
y si nada ocurre caemos al suelo
mirando alrededor por si acaso
una estrella baje y nos cumpla el deseo.


María Laura Decésare




Esperamos sempre que aconteça algo,
ficamos alerta e, se nada acontece,
caímos ao chão olhando em volta,
a ver se uma estrela cai
e nos realiza o desejo.

(Trad. A.M.)


.

7.4.18

Luis García Montero (Confissões)







CONFESIONES



Yo te estaba esperando.
Más allá del invierno, en el cincuenta y ocho,
de la letra sin pulso y el verano
de mi primera carta,
por los pasillos lejos y el examen,
a través de los libros, de las tardes de futbol,
de la flor que no quiso convertirse en almohada,
por debajo de todo lo que amé,
yo te estaba esperando.

Yo te estoy esperando.
Por detrás de las noches y las calles,
de las hojas pisadas
y de las obras públicas
y de los comentarios de la gente,
por encima de todo lo que soy,
de algunos restaurantes a los que ya no vamos,
con más prisa que el tiempo que me huye,
más cerca de la luz y de la tierra,
yo te estoy esperando.

Y seguiré esperando.
Como los amarillos del otoño,
todavía palabra de amor ante el silencio,
cuando la piel se apague,
cuando el amor se abrace con la muerte
y se pongan más serias nuestras fotografías,
sobre el acantilado del recuerdo,
después que mi memoria se convierta en arena,
por detrás de la última mentira,
yo seguiré esperando.

Luis García Montero






Eu estava à tua espera.
Para além do Inverno, em cinquenta e oito,
da letra insegura e do Verão
da primeira carta,
pelos corredores e o exame,
através dos livros, das tardes da bola,
da flor que não quis fazer-se almofada,
por debaixo de tudo quanto amei,
eu estava à tua espera.

Eu estou à tua espera.
Por detrás das noites e das ruas
das folhas pisadas
e das obras públicas
e dos comentários dos outros,
por cima de tudo quanto sou,
de certos restaurantes a que não vamos já,
com mais pressa do que o tempo que me foge,
mais perto da luz e da terra,
eu estou à tua espera.

E estarei à tua espera.
Como os amarelos do Outono,
palavra de amor ainda perante o silêncio,
quando a pele se apagar
e o amor se abraçar com a morte
e se puserem mais sérios os nossos retratos,
nos alcantis da memória,
depois de a lembrança se desfazer em areia,
por trás da mentira derradeira,
eu estarei à tua espera.

(Trad. A.M.)

.

6.4.18

Carlos de Oliveira (Implacável)





(Implacável)


Levou o resto da manhã às voltas com a ideia e tanto lhe mexeu que a deixou a sangrar: o sangue farto das feridas recentes.

Espantava o sono com goladas de uma garrafa de aguardente que escondia no cofre.

Pouco a pouco, ressuscitava nele o homem implacável que a intensa amargura dalguns dias arrancava ao desespero a que descia, como se o vento desse na poeira da sua consciência desmoronada e as pedras limpas se reerguessem umas sobre as outras.

Nesses acessos tornava-se rígido, cruel.

Orelhas surdas a lágrimas ou rogos.

Por exemplo, saltava às suas terras, ao pegar do trabalho, e camponês que não chegasse a horas já sabia, a jornada descontada ou despedido pura e simplesmente.

A indiferença dum capataz na roça. (XIX)

CARLOS DE OLIVEIRA
Uma Abelha na Chuva
(1953)

__________________

Vocabulário:

campar
dejuar
esbarrondar
estiar
estrafungar
lombeira
marulho

.

5.4.18

José Luis García Martín (Martinho da Arcada)





MARTINHO DA ARCADA



Ah, discurrir de todo, darle la vuelta al mundo,
forjar raras teorías, derribarlas de un soplo,
estar solo, muy solo, rodeado de amigos,
o en buena compañía sin nadie a nuestro lado.

Beber cerveza amarga o licores oscuros
desear estar muerto, mejor no haber nacido,
ser Hamlet que manda su Ofelia a algún convento
y Adriano que espera el abrazo de Antinoo.

Ah, ser todo y ser nada en esta plaza abierta
a mares y regiones que no están en el mapa,
y en que aún susurran sueños sirenas del Oriente.

Y muy de tarde en tarde, en el dorso de un sobre,
escribir algún verso como carta de amor
que nunca ha de llegar a su incierto destino


J.L. García Martín





Ah, discorrer sobre tudo, dar a volta ao mundo,
forjar estranhas teorias, derrubá-las de um sopro,
estar só, muito só, rodeado de amigos,
ou em bela companhia sem ter ninguém ao lado.

Beber cerveja amarga ou estranhos licores,
desejar estar morto, ou antes não ter nascido,
ser Hamlet mandando Ofélia para um convento,
ou Adriano que espera o abraço de Antinoo.

Ah, ser tudo e ser nada nesta praça aberta
a mares e paragens que não vêm no mapa,
onde seus sonhos sussurram as sereias do Oriente.

E muito de tarde em tarde, nas costas de um envelope,
algum verso escrever como carta de amor
que não há-de nunca chegar a seu incerto destino.

(Trad. A.M.)


.

4.4.18

José Emilio Pacheco (O olhar do outro)




LA MIRADA DEL OTRO



El pez en el acuario
mudo observa
el espacio que mide con su vuelo.
Del agua sólo sabe:
“esto es el mundo”.
De nosotros lo azoran los enigmas.
“¿Quiénes serán? Extraños prisioneros
de la Tierra y el aire.
Si vinieran aquí se asfixiarían.
“Los compadezco. Pobres animales
que dan vueltas eternas al vacío.
“Viven para ser vistos.
Son carnada
de un poderoso anzuelo inexplicable.
“Algún día
he de verlos inertes, boca arriba,
flotantes en la cima de su Nada”.


José Emilio Pacheco





O peixe no aquário
mudo observa
o espaço que mede com seu voo.
Da água apenas sabe:
“este é o mundo”.
De nós inquietam-no os enigmas:
“Quem serão? Estranhos prisioneiros
da Terra e do ar.
Aqui dentro asfixiavam.
“Tenho pena deles. Pobres animais
eternamente às voltas no vazio.
“Vivem para ser vistos.
Isco são
de um poderoso anzol inexplicável.
“um dia
hei-de vê-los inertes, de boca para cima,
flutuando em cima do seu Nada”.


(Trad. A.M.)

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